terça-feira, 14 de outubro de 2008

Vermelho

Inserido na sequência "Contos de Todas as Cores". Provavelmente irei um dia destes criar mais um blog só para estes textozitos ...

Vermelho


Nas dunas do Wadi Tumilat vivia um velho pescador. A artrite tolhera-lhe os dedos e as cataratas diminuíam a sua visão a cada novo dia.

A sua filha Bashirah enviara-lhe recados pedindo que fosse viver com a sua família. Sabendo que o velho Harith não quereria ser um fardo, Bashirah alegara que necessitava da sua companhia e sabedoria para educar os netos, Karif e Murad. Harith sempre ignorara as mensagens até agora. O frio intenso e as chuvas frequentes tornavam difícil a vida na cabana das dunas. A doença impedira-o de prover ao seu sustento nos barcos de pesca. Mazin, um dos mestres, ainda lhe dava peixe a troco de remendos nas redes mas já nem isso Harith conseguia fazer sem dores terríveis.

Decidiu por fim que era tempo de fazer a vontade à filha. Em espírito, despediu-se de Nisrin, a falecida esposa a quem chamara tantas vezes a sua Faridah (jóia), tão bela fora. Lamentara a sua perda mas naquele momento estava feliz por ela ter partido primeiro. Não queria que Nisrin o tivesse visto assim, velho e enfraquecido ... contendo as dores e a fome que nunca desaparecia completamente, Harith adormeceu.


Acordou de madrugada com uma voz sussurante ao ouvido: - Levanta-te, é tempo de partir.
- Nisrin ? – perguntou.
Não obteve resposta, apenas o rumor do vento. Não ... aquilo não era apenas vento. Parecia uma grande caravana. Quem passaria no Wadi naquela altura do ano ?
Afastou os juncos da entrada e viu uma fila imensa de gente com ar cansado. Tinham ar de estrangeiros e de quem caminhava há muito tempo, com as vestes cobertas de pó. Traziam poucos pertences, como se a partida tivesse sido apressada.
Ou em fuga. Agora que conseguia ver um ou dois rostos, via que ninguém olhava para trás.

“Quem serão ?” pensou. “Vai com eles” ouviu num sussurro. Desta vez teve a certeza de que se tratava de Nisrin, encorajando-o.
Pegou no cajado de que agora necessitava para caminhar, colocou alguns bocados de peixe seco numa sacola e esperou na porta. Para o fim da caravana, as pessoas estavam dispersas, quase todas tão idosas como ele. Não iriam dar conta de mais um caminhante.
Não ficou a pensar para onde se dirigiriam. Morrer acompanhado numa caminhada era melhor do que morrer sozinho numa cabana de juncos. Apercebeu-se de que havia gente atrás deles. “Não pares senão os soldados egípcios apanham-nos” ouviu uma mãe explicar a uma criança que se queixava de cansaço. “Soldados?” pensou Harith. “Mas então serão criminosos em fuga ? Não ... não pode ser ... há crianças e animais também, deve ser um erro! Porque estarão a ser perseguidos ?”

A certa altura a caravana deteve-se. Harith via tudo bastante enevoado, mas pareceu-lhe que tinham chegado ao Yam Suph – o Mar Vermelho não ficava longe. Já ali não ia há muito tempo, o que era natural uma vez que pouco conseguira pescar no meio de tanto junco e com marés tão extremas. “Provavelmente vamos esconder-nos” pensou. “Em vez de morrer na cabana vou morrer num pântano de juncos ... mais valera não ter vindo”. Apercebeu-se, no entanto, que as pessoas aguardavam algo. Nas margens do Yam Suph um homem falava com autoridade aos caminhantes, avisando-os de que teriam que atravessar o mais rapidamente possível logo que ele desse o sinal.

Subitamente, um vento forte levantou-se. O homem apontou o bordão às águas e, lentamente, elas começaram a descer. “Vamos, todos!” gritou.
Com ar aflito, os caminhantes apressaram-se a pisar no fundo descoberto do lago. “Apressem-se! Eles vêm aí!” exortavam-nos os homens mais jovens, ajudando as crianças e os idosos.
Harith olhou para trás mas devido às cataratas pouco via. Pareceu-lhe haver uma nebulosidade sobre a terra, barulho de cavalos ao longe. Mas o balir dos rebanhos que atravessavam com eles não o deixavam ouvir nitidamente o que lá vinha. Tentou apressar-se o mais que pôde.

Após horas de esforço intenso, os seus pés pisaram as areias secas da outra margem. Ajoelhou-se no chão, tocando a terra poeirenta com a testa mas depressa se endireitou. Num clamor, as águas do Yam Suph voltavam ao leito arrastando os soldados que os perseguiam. À sua volta, velhos e crianças gritavam de alegria sentados no chão. Vários tinham desmaiado devido ao cansaço.

Tinham atravessado!

3 comentários:

MT disse...

Obrigada pelo link, fiz o mesmo ao teu por dois motivos, para retribuir a cortesia e porque gostei mesmo.
Acho que deves mesmo continuar com estes textos tens muito jeito.
Vou ver se arranjo tempo para ler os que estão para trás.

redjan disse...

Wow.... e o facto é que depois de começar.... damos por nós presos... a seguir por ali ... querendo até estar ali.....


Muiiiiiiiito bom de ler!!! Mesmo!

PS: curioso, as letras para confirmar o comment são: rednar ... coincidence huh ?

XR disse...

redjan,
o Mundo está cheio de coincidências ... ou não!!!
Este conto foi algo que criei quase de sopetão, o que demorou mais foi a pesquisa de nomes.
Há outras ideias na calha à espera de um momento propício para saltarem para o papel ;)