sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Código inerte

(...)
"o Abismo é feito de todos os lugares onde ninguém está, das paisagens que ninguém vê. É feito do silêncio, e da falta, e do apagado, e do não-lido; é o abismo existente entre aquilo que queremos e aquilo que temos, entre amor e afeição, entre esperança e verdade. É o sítio de onde vêm as interpretações erradas e é a resposta a uma pergunta: uma árvore existe se não houver ninguém para a ver?"

Michael Marshall Smith, in «Clones»

É sobre o abismo que se estendem as cordas que ainda nos ligam - mas esfiapam-se, tornando-se mais finas, mais finas, cada vez mais finas até o dia em que por fim se partirão. Aí, não haverá mais nada, nem sequer ecos da presença há muito desvanecida. As recordações perder-se-ão como um pedaço de código comentado, tornado inútil, soterrado, esquecido.

Entre o que não era e o que nunca chegou a ser, a memória desaparecerá no abismo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

É assim uma dor...

Às vezes tenho dificuldade em traduzir para texto o que sinto e quero dizer.
Dou voltas, apago, escrevo, apago de novo e lá acaba por sair qualquer coisa que consegue transmitir mais ou menos o que eu queria - mas só mais ou menos, porque nisto de escrever não chego sequer aos calcanhares de muita gente que por aí anda.

O pior de tudo, a frustração, é encontrar, algum tempo depois, um texto escrito por uma dessas pessoas e que consegue o que eu não consegui: cristalizar, tornar tangível e perceptível a outros um dado momento, um sentimento, uma ideia ou sensação. E só posso abanar a cabeça e dizer "Bolas... quem me dera, raisparta." 
E entre a frustração e o maravilhamento leio e releio a crónica ou o excerto, desejando ter um centésimo daquela mestria, revendo-me a cada frase, encontrando-me em cada parágrafo. Acabando por chegar à conclusão de que tenho de trazer esse texto para aqui, afixá-lo com cavilhas para que fique bem seguro e exposto para ser lido, para que eu possa dizer "Era isto! Era isto! Percebem agora?"

Quando for grande quero saber escrever como o Miguel Esteves Cardoso.

«Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?

As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.»

Miguel Esteves Cardoso in "Último Volume" - encontrado aqui.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Um dia qualquer

Há anos que cá por casa o dia 14 de Fevereiro é apenas mais um dia como outro qualquer. Nenhum de nós celebra aniversário neste dia, nem sequer o gato.

Chateia-me que existam pessoas que acham que "dar" no âmbito da relação é lembrar-se religiosamente de aniversários, Natais e S. Valentim enquanto no resto do ano se marimbam para qualquer pequeno gesto de carinho.

Estaria a mentir se dissesse que "gestos grandiosos" não me impressionam - na realidade, impressiona-me mais o esforço colocado no acto do que o dinheiro gasto. Dou mais valor a quem resolve aprender a pintar, para criar pelas próprias mãos um quadro para oferecer, do que a quem compra um carro topo de gama ou um "cachucho" de vários milhares. Mas daria ainda mais valor se o pintor escolhesse algo para ser feito por ambos.

Se sou romântica? Só um bocadinho. Q.b., acho eu. Dou valor a coisas feitas a dois, mas nem tudo tem de ser feito a dois. Passeio à beira mar ao fim de tarde? Se não estiver a chover torrencialmente, sim. Tratar dos impostos? Nem pensar, a menos que ambos sejam contabilistas e estejam atulhados de trabalho - mas aí isso torna-se apenas "mais um dia no escritório".
Acima de tudo, tem de ser algo a que ambos dêem valor, de que ambos gostem. Não algo para um ostentar e outro sentir-se avassalado. Nem algo para um contar e mostrar a todo o mundo no fb "olhem como sou fixe e extravagante" enquanto o outro desejaria ter um saco de papel enfiado na cabeça.

Falo por mim: gostaria mais de um serão caseiro com boa comida, vinho, um sofá, um edredão quente e um DVD, do que um jantar de luxo naqueles sítios onde eu nem sei para que servem todos os garfos, mais champanhe e camarote VIP num espectáculo de um artista que não aprecie. No entanto, há quem goste, e acho bem que nesse caso a outra parte, se puder, lho proporcione. Mas também acho irrealista e insensível que uma das partes espere que a outra lhe ofereça um encontro de luxo quando sabe que no resto do mês a mesma pessoa terá de contar os tostões para beber café ou jantar decentemente.
Odeio exigências baseadas no que o resto do mundo espera que se faça ou goste.

Para mim, e simples: expectativas realistas e cada um saber aquilo de que o/a outro/a gosta. E tentar proporcionar pequenos momentos que façam ambos felizes. Não tem de ser no dia 14 nem sequer em Fevereiro. Melhor ainda num dia "só porque sim", porque apeteceu, porque por mero acaso encontrámos na montra de uma pequena loja algo que sabemos que a outra pessoa irá apreciar.

Mostrar-lhe, com um pequeno gesto, que não é num só dia que nos lembramos, mas sim todos os dias que trazemos essa pessoa no coração.

Como não tenho quem me convide a ficar, abraçados, junto à janela enquanto lá fora a tempestade ruge e os relâmpagos parecem rachar o céu em dois, nenhum dia é especial nem "porque sim". Este e todos os outros em que assisto ao magnífico espectáculo da natureza sozinha, não passam de um dia qualquer.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

[Palavras de outros]


Recolho o mel, guardo a alegria e digo-te baixinho: "Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge".

Al Berto - O Último Coração do Sonho