segunda-feira, 26 de abril de 2010

Crónicas

Era uma menina sossegada. Tinha o riso fácil sem gargalhar, que subia até aos olhos e criava covinhas nas bochechas. Brincava com bonecas ou carrinhos, sem distinção – mas a sua preferência ia sempre para os livros que lhe abriam portas de outras casas, retratos de outras paisagens, vozes de outras gentes.

A menina cresceu. Pouco falava de si e do que pensava, excepto quando as perguntas lhe eram colocadas directamente.
Na escola os professores dividiam-se: uns gostavam da adolescente calada que não perturbava as aulas e só mostrava o que sabia nos testes escritos; outros achavam que isso apenas provava que ela se limitava a estudar para esses mesmos testes sem apre(e)nder de facto a matéria e penalizavam-na na nota final.
O seu riso tornou-se mais reservado, poucas vezes passando além do sorriso, o seu humor tornou-se apreciador da ironia, do sarcasmo, dos subentendidos.
“Humor britânico” era o que lhe atribuíam os colegas que lhe conheciam essa faceta.
Teve os seus amores e desamores como todas as meninas adolescentes. Sofreu em silêncio e desabafou por escrito as dores de crescimento como muitas meninas adolescentes. E à semelhança dessas outras meninas criou-se dentro dela um mundo feito de palavras, cores e sentimentos, que não partilhava com quase ninguém – normalmente só com outras meninas portadoras de mundos similares.

A menina tornou-se mulher. Achando que tudo seria mais fácil, que já não precisaria do seu pequeno mundo, trancou-o. Fez-se à vida adulta de peito feito, acreditou no poder do amor para tudo vencer e foi traída pela sua crença. Uma, duas, várias vezes acreditou – e de todas essas vezes foi derrotada.
Acabou por perceber que, para de facto ter poder, o Amor precisa que dois seres lhe dêem a força necessária para vencer os obstáculos; um não é o suficiente.
Magoada, reabriu o portão do seu mundo secreto, pequeno mas verdejante: de tantas lágrimas engolidas durante anos, tinha rios, e as sombras escondidas no olhar tinham chovido abundantemente sobre os altos e baixos feitos colinas. O seu mundo interior era agora um imenso Mar a redescobrir, sonhos liquefeitos em cambiantes de azul.

Partiu em descoberta, registando em pequenas notas os caminhos que trilhara, as baías onde se abrigara das tempestades, os monstros que lhe tinham tolhido passagens. Via o mundo exterior como uma continuação desse mesmo mar, para cuja exploração as suas notas seriam preciosas.

De vez em quando o mundo interior da menina corria perigo. As águas contidas estalavam em tempestades ensurdecedoras capazes de a fazer perder o controlo. Chorava então, um dia inteiro de choro silencioso ou uma noite inteira de soluços fungados. Ambos, às vezes. Quando a acalmia se impunha, partia de novo então na sua viagem, crendo que iria um dia encontrar o que procurava; a razão da sua partida.

Ao longo dos anos conheceu muitos mundos como o que criara. Uns completamente abertos, outros bastante fechados, outros ainda divididos onde existia sempre uma zona reservada, um domínio proibido. Coloridos, baços, áridos ou florestados, tão variados como os seus criadores.

Acabou por abrir as suas portas a outros viajantes, guardando no entanto para si os locais favoritos: as montanhas escarpadas, o promontório, a ilha e sua torre de marfim. Sítios onde podia isolar-se quando quisesse, ou largar tudo e navegar até ao seu próprio centro. Criou outros mundos (alguns terrivelmente estranhos) para onde viajava a seu bel-prazer, traçando cores novas num imenso arco-íris. Visitou mundos alheios, deixando quase sempre uma pincelada da sua imensa paleta nos livros de visitas.

O tempo foi passando, as notas e cartas de marear acumularam-se bem como as experiências.
A menina, hoje mulher, não perdeu apesar de tudo a vontade de navegar e viaja de olhos postos no céu.
Sabe que o mundo é enorme e sonha que talvez algures, no mar ou entre as estrelas, exista algo ou alguém que torne desnecessária a existência de um mundo secreto para onde fugir, que lhe proporcione forças para construir uma realidade inquebrável, fazendo erguer dos mares do medo uma ilha segura.
Talvez nem valha a pena procurar, porque a menina também aprendeu que mais importante do que o destino é ter coragem para se pôr a caminho. Companhia, se existir, será um bónus... mas a viagem terá que ser sua. Não mais viajará a reboque de outros.

Contra medos e marés, sonha num qualquer amanhecer acostar à última praia acolhedora e deixar-se adormecer sem receio, embalada pelo arrulhar das ondas.


Um dia irá partilhar com o mundo as suas crónicas de viagem - e as cartas de marear.
Espero que seja em breve...

1 comentário:

ivy disse...

magnífico!!!


força! coragem! estarei aqui para te ler :D



beijinho