O sítio onde os meus pensamentos se transformam em palavras ... e onde os colo conforme me dá na telha
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Joelhos e memórias
Antes que comecem a interrogar-se o que tem uma coisa a ver com outra, deixem-me contar do princípio.
Hoje dei um trambolhão – de manhã, à entrada ao serviço. Uma rampa de boa calçada portuguesa, suja e molhada de chuvisco, esperava sorrateiramente por mim. Já nos conhecemos há seis anos, eu e aquela rampa. Mas hoje a sacana apanhou-me de surpresa. “Quando andas de saltos altos tens cuidado ... pois então é hoje que te apanho!”. Apanhou-me mesmo, desprevenidíssima. Ainda fui a tempo de rodar o corpo ao cair para não bater com as costas. Resultado: joelho esquerdo completamente esfolado e se não fossem as calças teria sido pior.
Ao chegar ao gabinete fui lavar e desinfectar a ferida e dei comigo a pensar na última vez que me tinha visto naqueles assados ... apercebi-me que se passaram mais de vinte anos e que nesse tempo muita coisa mudou.
Naquela altura andava-se de bicicleta para todo o lado, trepava-se às arvores onde se fazia uma casita com tábuas velhas, desciam-se ladeiras em carrinhos de rolamentos, jogava-se ao berlinde com três covas no chão e conquistava-se um mundo desenhado na terra batida com um canivete ou uma cavilha de palmo. Caíamos, levantávamo-nos e qualquer das nossas mães tratava das esfoladelas como se fosse o próprio filho.
Os amigos eram mesmo amigos. Num dia andávamos à pêra e no seguinte lanchávamos em casa uns dos outros. As mães não se preocupavam porque andávamos sempre em grupo e qualquer estranho que aparecesse (o que era raro) era escrutinado de alto a baixo como se estivesse numa esquadra de polícia. Se não estivéssemos à vista era porque estávamos a jogar cartas, monopólio ou dominó em casa de um amigo.
Armavam-se tendas de índios com cobertores roubados dos armários dos pais e o dia de mudar os lençóis de cama eram pretexto para fazer tendas das mil e uma noites num canto do quarto, com édredons a fazer de puffs e canapés. As embalagens vazias de iogurte serviam de casinha para os Estrunfes, a Abelha Maia ou o Vickie.
Hoje a garotada tem mini-motas, playstations, o berlinde joga-se como se fosse o jogo da malha e o mundo conquista-se online no écran do computador. Não se trepa às árvores nem se joga ao mundo porque muitos bairros nem sequer um torrão de terra decente têm para brincar, quanto mais árvores suficientemente grandes para fazer uma casinha lá em cima.
Hoje os miúdos têm mais conhecidos do que amigos. Alguns moram no mesmo prédio, têm a mesma idade e nunca brincaram juntos. Passam horas encafuados em ATL ou AEC, ballet, natação ou inglês. Andam a reboque dos pais porque já ninguém deixa os filhos em casa da vizinha para ir fazer as compras do mês. E eles cobram-nos a seca que apanham - em géneros: uma boneca, um carrinho, um livro. Não brincam na rua porque é perigoso, seja pelos carros em excesso, seja pelos desconhecidos constantemente a passar.
Se faltar a electricidade, ficam sem saber o que fazer – sem playstation, computador ou TV, não sabem bem a que hão de brincar. As embalagens vazias são cuidadosamente separadas para reciclar – acho que é a única coisa que eles têm de mais positivo.
Quando crescerem, os meus filhos não vão ter as cicatrizes que eu tenho: nos dois joelhos, nos cotovelos, no sobrolho, na cabeça ...
Mas também não vão ter as minhas recordações ou o sorriso que tenho agora ao lembrar-me de como, apesar do pouco que tínhamos comparados com eles, era feliz.
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4 comentários:
É mesmo isso, revi-me neste post.
E o Mikado? Lembras-te?
Sem querer medir felicidades, acho que a nossa era mais genuina.
As melhoras do teu joelho!
Ainda hoje assisti ao "espalhanço" ao comprido do presidente da minha escola, num campo de terra/lama. O que eu me ri, até chorei. Não resisto a uma boa queda...dos outros.
;)
Caramba, lembro-me perfeitamente!
E do Lemon Twist, da macaca e da ciruma!
Hoje já não se brinca com riscos no chão ... só geringonças com botão ON/OFF.
Ciruma ? Geeeeeee ... lembras-te ? Pensei que poucos jogavam ... lá na rua houve tempo que até agoniava tanta Ciruma ... com equipas sempre à espera!
Qto ao post .. assim de repente ...
muiiiiiiiiiiito bom ! E factual . ;-)
@John
Como poderia não me lembrar? Jogava-se quase todos os dias quando não chovia ...
O liceu (hoje chamado EB2,3) onde a minha filha esteve é o mesmo onde eu andei - alguém teve a belíssima ideia de perpetuar as marcas da ciruma num dos pátios, em pedras de cor diferente. Sabes o mais triste?
Nenhum daqueles garotos sabia/sabe para que servem aquelas linhas no chão - uma tradição perdida de forma tão gratuita ...
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