terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Memória

Ninguém me ouve.
Ninguém me responde.
Estou farto de emitir apelos em todas as direcções que constam do banco de dados.
Talvez os danos tenham sido piores do que pensei, não tenho leituras.
Edess está caído no chão, nada mais posso fazer por ele. Kipat geme sem cessar. Os gritos e uivos de dor tornaram-se num murmúrio. O sangue empapa o chão. Nem sequer tenho forma de a ajudar. Tentei aceder ao controle de suprimentos médicos em busca de um analgésico, um sedativo, qualquer coisa que a ajude e a mim. Não consegui.

Já não suporto o barulho, não consigo raciocinar. Sou a única esperança que têm e não consigo fazer nada a não ser emitir apelos constantes até que a pilha nuclear se acabe.
Levir não dá qualquer sinal. Estava no porão quando se deu o ataque. Não deve ter sobrevivido.
Espero que nos venham resgatar depressa. Quanto mais não seja, porque querem de volta o alienígena que está no porão, num compartimento crioestático. Os dados do tubo de estase chegam até mim mas não fazem qualquer sentido. Não sei se o alienígena que lá está dentro estará vivo ou não.

Porque raio optaram por fazer este transporte ? Dinheiro, sempre o dinheiro. O mesmo dinheiro que quase acabou comigo quando piratas espaciais atacaram a nave onde seguia, há 2 megaciclos atrás.
Edess e Levir sabiam do perigo, mas o dinheiro da Federação falou mais alto. Onde tinham eles a cabeça quando aceitaram transportar aquele ser de outra galáxia ? Os manda-chuvas da Federação pensaram em salvar os cabedais dos seus meninos da Frota, suspeitava-se que alguém viria em busca do alienígena. Calhou-nos a nós levar com o impacto de um canhão de beta-plasma no casco.

Kipat continua a gemer. O seu corpo está muito danificado. A única esperança para ela é salvarem-na a tempo de a converter numa UCCI. Para muitas naves que seguem as rotas comerciais, uma UCCI (Unidade Central de Controlo Interno) é o que as salva da morte certa. Uma UCCI é uma bio-AI. Um computador aliado ao cérebro de uma pessoa, às suas memórias e experiência. É-lhe dado um tratamento de supressão de emoções para que não tenha um esgotamento; ser uma UCCI é uma responsabilidade tremenda.
Algumas UCCI têm a memória de astronautas que atingiram a idade da reforma mas querem continuar ligados ao espaço a que devotaram as suas vidas. Outras, como a desta nave, têm uma UCCI com a memória biológica de um astronauta cujo corpo não pôde ser salvo.
É a única esperança de Kipat. Sei o suficiente de biologia centauriana para ver que ela não vai durar muito mais.
Continuo a emitir na direcção de todas as colónias da Federação e todas as rotas conhecidas. Alguém me há-de ouvir.
Kipat soergue-se a custo. Arrasta-se na direcção do posto principal e passa a mão tremente pela consola táctil.
- Dai ? Sei que vou morrer ... os socorros não chegarão a tempo. És o melhor amigo que alguma vez tive ... só é pena ter-te conhecido tão tarde, queria ter nascido dois megaciclos antes ... para ver como eras, quando eras humano. Gostaria de te poder abraçar ... – uma golfada de sangue sai-lhe pela boca e ela cai de novo no chão.

Choraria se ainda tivesse olhos. Não é fácil ser uma UCCI.


2004 / Inspirado pela short-story de Joan D. Vinge Tin Soldier

3 comentários:

Maguetas disse...

Não te conhecia ainda esta veia Sci-Fi... Gostei muito, siss!

Anónimo disse...

Pô, as recordações que este texto me trouxe!

E cara Amiga, recordas a experiência de escrita a seis mãos?

Como os tempos mudaram, mas as memórias permanecem.

XR disse...

@Sis:
Eu bem te tinha dito que só conhecias a ponta do iceberg;

@Ricardo:
É sempre bom ter-te por aqui e recordar saudáveis maluqueiras, como a aventura 3R d'"O Guardião" ou ... ogres e anões na floresta a assar salsichas, armados com mocas de Rio Maior e revistas escanifobéticas (you had it coming, you little devil)